Sabores angolanos e portugueses, cruzando alma e tradição, juntaram em Luanda os ‘chefs’ Henrique Sá Pessoa e Ricardo Braga que apostam na valorização da gastronomia como motor económico e cultural. Foi pena os 20 milhões de pobres angolanos, muitos dos quais se alimentam nas lixeiras de Luanda, não terem acesso. Mas não se pode querer tudo, não é?
Pela primeira vez, Luanda recebeu um ‘chef’ premiado com duas estrelas Michelin, para um evento desdobrado em dois jantares de assinatura e um ‘showcooking’, no hotel Epic Sana, na sexta-feira e no sábado e que esgotaram.
Em entrevista à Lusa, Henrique Sá Pessoa apontou a mistura de influências angolanas e portuguesas nas receitas dos dois países, sublinhando a importância de fazer um trabalho de recuperação do receituário angolano, algo que está a ser feito também por ‘chefs’ como Ricardo Braga, que o acompanha nesta aventura gastronómica.
“Partindo desse trabalho podemos ver a inovação a acontecer”, afirmou, realçando que a projecção mediática dos ‘chefs’ é também uma oportunidade para valorizar a gastronomia nacional, “e não apenas o que vem de fora”.
Um trabalho que já começou a ser feito em Portugal, dando origem a uma geração de ‘chefs’ que usam como ponto de partida produtos nacionais ou a gastronomia tradicional, e cujas sementes estão agora a ser lançadas em Angola.
“Não tem necessariamente de ser pratos tradicionais, mas pelo menos o produto deve ser local”, destacou, realçando que o uso deste tipo de ingredientes significa também apoiar os produtores, os pescadores e a economia em geral.
“Se formos ver o exemplo de Portugal, uma das formas de saída da crise foi o turismo que trouxe um impacto muito grande para Lisboa e Portugal, não só em termos mediáticos, como económicos, se pensarmos que em restaurantes e bares, na hotelaria, a gastronomia tem uma parte importante na facturação”, declarou Henrique Sá Pessoa.
O ‘chef’ disse ainda que tão importante como ter pratos nacionais para dar a conhecer aos turistas, é a qualidade, com “boa cozinha, bom serviço e consistência”, já que os visitantes vão propagar essa mensagem.
O angolano Ricardo Braga, assumido discípulo e seguidor de Sá Pessoa, afirmou que esta será uma oportunidade de catapultar a gastronomia angolana para um nível mais elevado, bebendo da experiência do premiado ‘chef’ português para “resgatar alguns produtos nacionais, transformá-los e promovê-los”.
“Há muita coisa por descobrir, esse é um trabalho de campo que se está a fazer e nós, os criativos, inspiramos também outros jovens para que a gastronomia angolana se desenvolva e cresça. Todos nós temos um papel fundamental nisso”, notou.
Nos 12 momentos do jantar de assinatura, divididos entre os dois ‘chefs’, misturaram-se sabores portugueses e angolanos, com ingredientes clássicos apresentados de forma inovadora e sofisticada.
Lírio, lagosta com molho de caril, cherne “alentejano” com puré de ervilhas e chouriço de porco, pele de porco “piri-piri” e uma sobremesa de pinhão em formato de azulejo foram os paladares portugueses propostos por Henrique Sá Pessoa.
Do lado angolano, Ricardo Braga homenageou os pescadores que “trazem o bom peixe para a mesa”, apresentando carabineiros e camarão alistado da costa angolana, muamba de galinha com uma técnica culinária distinta e carne seca com muteta, um prato tradicional.
A finalizar a degustação, esteve em destaque o fruto do embondeiro, a múcua, protagonista da sobremesa, sob a forma de gelado, espuma e pó.
Segundo a Terra Bela Eventos, entidade organizadora, Ricardo Braga iniciou o seu percurso na Europa com vários projectos internacionais, tendo passado ainda pelo Ritz Four Seasons Lisboa, Meridien, e pela cozinha de três restaurantes com estrela Michelin: Feitoria, Eleven e Loco.
Em 2015 participou com dois ‘chefs’ angolanos no First Angolan Gala Dinner at the Gastronomy Academy no Grand Palais em Paris, França, e fez parte do grupo integrante do arranque do primeiro hotel de cinco estrelas em Angola, HCTA.
Posteriormente inaugurou o restaurante Flor do Duke e dedica-se actualmente ao desenvolvimento de projectos de consultoria gastronómica e formação em Angola.
Henrique Sá Pessoa já arrecadou vários prémios, entre os quais o Concurso Chefe Cozinheiro do Ano, o mais prestigiado da cozinha em Portugal, e o prémio “Arte da Cozinha” de 2007, concedido pela Academia de Gastronomia Portuguesa.
Inaugurou o seu primeiro projecto a solo, o restaurante Alma, em 2009, e recebeu o prémio de Restaurante do Ano pela Revista de Vinhos.
Em 2015, reabriu o Alma, e no ano seguinte recebeu a sua primeira estrela Michelin. Dois anos depois, em 2018, ganhou a segunda.
Em Setembro de 2022, Henrique Sá Pessoa consolidou, pelo segundo ano, o lugar na lista dos Best Chef Awards na 70.ª posição.
Recorde-se que a elite do regime angolano já está habituada a estes manjares. Nas suas meses são habituais trufas pretas, caranguejos gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e vastas selecções de queijos acompanhados de mel e amêndoas caramelizadas, acompanhados com cinco vinhos diferentes, entre os quais Château-Grillet 2005.
Não falta também caviar legítimo com champanhe, salmão fumado, bifes de vaca de Quioto e espargos brancos…
Por outro lado, nas lixeiras onde milhões de angolanos se alimentam, os pratos mais comuns são o peixe podre e a fuba podre. Como acompanhamento, a Polícia regra geral acrescenta porrada se refilarem.
Folha 8 com Lusa
Foto: Lusa